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O austríaco Wolfgang Jäger tinha 36 anos em 2006, quando sofreu um acidente de esqui que o deixou com os membros inferiores paralisados. Desde então, se locomove em uma cadeira de rodas. Porém, no ano passado, caminhou na areia da praia pela primeira vez em 17 anos, movimentando as próprias pernas. Ele é uma das duas pessoas com lesão da medula espinhal parcial beneficiadas por uma técnica experimental que restaurou a mobilidade e a independência de pacientes com paraplegia.

A técnica foi descrita neste mês na revista Nature Medicine por pesquisadores do Hospital Universitário de Lausanne (CHUV) e da Escola Politécnica de Lausanne (EPLF), na Suíça. O estudo mostrou como a estimulação cerebral profunda (DBS, sigla em inglês) ativa neurônios no hipotálamo lateral, uma área pouco estudada nas pesquisas sobre lesão na medula espinhal, resultando em melhorias na locomoção. Os participantes do experimento relataram progresso imediato na marcha, com aumento na resistência e redução do esforço percebido. Jäger, inclusive, consegue subir degraus. A abordagem reorganizou projeções neurais medulares remanescentes, promovendo melhorias funcionais duradouras.

A DBS é uma técnica neurocirúrgica bem estabelecida, que envolve a implantação de eletrodos em regiões cerebrais específicas para modular a atividade neural. Tradicionalmente, tem sido usada para tratar distúrbios de movimento, como a doença de Parkinson e tremor essencial, visando áreas do cérebro responsáveis pelo controle motor. No Brasil, a estimulação cerebral profunda já é aplicada nesses casos.

Agora, ao utilizar a DBS no hipotálamo lateral para tratar paralisia parcial, os autores do estudo apresentam uma nova abordagem da técnica. Segundo o artigo, a estimulação não apenas mostrou resultados imediatos, melhorando a marcha na reabilitação: a longo prazo, mesmo quando o aparelho estava desligado, o benefício foi mantido. A descoberta, afirma Grégoire Courtine, codiretor do Centro NeuroRestore do Hospital Universitário de Lausanne, sugere que o tratamento reorganiza as fibras nervosas que sobraram na medula espinhal, contribuindo para “melhorias neurológicas sustentadas”.

“Essa pesquisa demonstra que o cérebro é necessário para se recuperar da paralisia. Surpreendentemente, o cérebro não é capaz de aproveitar ao máximo as projeções neuronais que sobrevivem após uma lesão na medula espinhal”, comentou Courtine, em nota. Estudos anteriores com DBS em pacientes paralisados estimularam diretamente a medula espinhal, em vez do cérebro. “Aqui, descobrimos como explorar uma pequena região cerebral que não era conhecida por estar envolvida na produção da caminhada para envolver essas conexões residuais e aumentar a recuperação neurológica em pessoas com lesão na medula espinhal.”

O sucesso da terapia DBS dependeu de duas abordagens complementares: descobertas possibilitadas por novas metodologias em estudos com animais e a tradução desses experimentos em técnicas cirúrgicas precisas em humanos, explicou o neurocirurgião. Para a cirurgia, os pesquisadores usaram exames cerebrais detalhados que orientaram os locais precisos da implantação de pequenos eletrodos no órgão, enquanto o paciente estava totalmente acordado.

Jocelyne Bloch, neurocirurgia de Lausanne que também participou do estudo, conta que, assim que o eletrodo foi implantado e a estimulação ocorreu, a primeira paciente disse que já sentia as pernas. “Quando aumentamos a estimulação, ela disse: ‘Sinto vontade de andar!’. O feedback em tempo real confirmou que tínhamos como alvo a região correta, mesmo que essa região nunca tivesse sido associada ao controle das pernas em humanos. Nesse momento, eu sabia que estávamos testemunhando uma descoberta importante para a organização anatômica das funções cerebrais.”

A identificação do hipotálamo lateral como um participante-chave na recuperação motora após a paralisia é, por si só, uma descoberta científica importante, dado que essa região tradicionalmente só tem sido associada a funções como excitação e alimentação, explicaram os autores do estudo. O avanço surgiu do desenvolvimento de uma nova metodologia multietapas que começou com o mapeamento anatômico e funcional de todo o cérebro para estabelecer o papel específico dessa parte do cérebro na caminhada. Em seguida, experimentos em modelos animais estabeleceram os circuitos precisos envolvidos na recuperação. Por fim, os resultados levaram a ensaios clínicos em participantes humanos.

“Sem esse trabalho fundamental, não teríamos descoberto o papel inesperado que essa região desempenha na recuperação da caminhada”, comentou Jordan Squair, um dos principais autores do estudo. “Foi uma pesquisa fundamental, por meio da criação de mapas detalhados de todo o cérebro, que nos permitiu identificar o papel do hipotálamo lateral inesperado na recuperação da caminhada”, disse.

Os autores afirmam que os resultados abrem caminho para novas aplicações terapêuticas para aumentar a recuperação da medula espinhal. As próximas pesquisas do grupo vão explorar a integração da DBS com outras tecnologias, como implantes espinhais que já mostraram potencial na restauração do movimento em estudos anteriores. “Integrar nossas duas abordagens — estimulação cerebral e espinhal — oferecerá uma estratégia de recuperação mais abrangente para pacientes com lesões na medula espinhal”, diz Courtine.

O avanço descrito nessa pesquisa complementa outro estudo de impacto, conduzido pela Universidade de Louisville, nos Estados Unidos, que investigou a estimulação epidural da medula espinhal combinada com treinamento locomotor. Essa pesquisa mostrou que pacientes com paralisia motora completa poderiam recuperar a capacidade de andar em ambientes controlados. Enquanto o estudo norte-americano focava na estimulação local da medula espinhal, a nova pesquisa amplia o horizonte ao direcionar regiões específicas do cérebro capazes de coordenar a recuperação. O que estamos vendo é uma integração de esforços associados: enquanto a estimulação epidural da medula espinhal oferece suporte motor direto, a estimulação cerebral profunda em uma região específica do cérebro vai além e atua como uma chave mestra, reorganizando redes neurais para potencializar a recuperação funcional. Essas descobertas abrem novas portas para o tratamento de lesões complexas. No Brasil, a estimulação medular e cerebral já é uma realidade consolidada em tratamentos para condições como dor crônica e Parkinson, com resultados expressivos. Esses avanços mostram o potencial da neuroestimulação como ferramenta terapêutica, aliando tecnologia e neurociência de ponta. No caso de paralisias, embora a aplicação ainda esteja em fases de estudos e validação, a consolidação dessas técnicas no país pode abrir novas possibilidades promissoras, trazendo esperança para pacientes e ampliando o alcance da reabilitação funcional.

Marcelo Valadares, neurocirurgião funcional, especialista em doenças neurodegenerativas e pesquisador da Universidade de Campinas (Unicamp)

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