
A sensação de insegurança no Rio de Janeiro foi um dos assuntos mais recorrentes de 2024, sobressaindo, inclusive, nos debates às eleições municipais do estado. O protagonismo desse tema não acontece sem fundamento, já que estatísticas de criminalidade apontam para a piora de alguns índices. O roubo de veículos, por exemplo, aumentou cerca de 36% de janeiro a novembro em relação ao mesmo período de 2023, segundo o Instituto de Segurança Pública. O mesmo aconteceu com os latrocínios, roubo com consequência morte: houve crescimento de 42% dos casos, comparando os primeiros 10 meses de 2024 com os de 2023.
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O último ano também foi marcado por casos que escancararam o crescimento e o controle de organizações criminosas sobre o Rio. Em outubro, por exemplo, a Polícia Militar precisou recuar numa operação no Complexo de Israel, na Zona Norte, após três pessoas morrerem e outras três ficarem feridas no tiroteio que parou a Avenida Brasil. Além disso, cerca de 17 pessoas foram baleadas por engano ao entrarem em comunidades conflagradas na região metropolitana do Rio.
Moradores de bairros onde a criminalidade não era recorrente também viram a rotina mudar em razão da violência. Vila Isabel, na Zona Norte, primeiro bairro planejado do Rio, reduto do samba e da boemia, convive atualmente com uma intensa disputa territorial entre facções rivais. O Itanhangá, na Zona Oeste, conhecido pelos condomínios de luxo, vive cenário semelhante.
Essa briga expansionista do crime organizado coloca pessoas inocentes em risco diariamente. Em agosto, criminosos em motocicletas atiraram contra os participantes de uma festa no Morro dos Macacos, favela em Vila Isabel. Na ocasião, um menino de 13 anos e um entregador de farmácia foram atingidos por balas perdidas e morreram. Segundo o Fogo Cruzado, 405 pessoas morreram e outras 458 ficaram feridas em tiroteios no ano passado. Ao menos 77 foram baleadas a esmo, das quais 22 não resistiram.
Para combater esse cenário preocupante, até o prefeito Eduardo Paes apresentou uma alternativa: preparar os primeiros agentes da Força Municipal de Segurança, que devem ser contratados e treinados ainda neste ano. A proposta é de atuação preventiva e de combate a pequenos delitos no Rio.
Mas armar a guarda é uma solução? O que falta para as polícias do estado conseguirem diminuir os índices de criminalidade e pacificarem territórios? Três especialistas ouvidos pelo EXTRA apontam caminhos possíveis para a retomada da segurança no Rio.
Jacqueline Muniz, professora do departamento de segurança pública da Universidade Federal Fluminense — Foto: Arquivo pessoal
Jacqueline Muniz, professora do departamento de segurança pública da Universidade Federal Fluminense
A segurança pública no Rio tem jeito?
Tem jeito, sim, claro. O que acontece hoje no Rio de Janeiro não é exclusividade. Vimos cenários muito parecidos em outros lugares, como Chicago, Nova York, Londres. E todos esses casos tiveram solução porque se investiu em blindar as polícias dos esquemas político-partidários. Elas ganharam independência de funcionamento. Eu já falei diversas vezes que o nosso problema é político. Não precisamos de novas ideias, mudar a constituição ou de mais dinheiro, ao contrário, com menos se faz mais e melhor. O nosso desafio envolve uma articulação federativa. Será que o governante está interessado em cortar na própria carne? Tirar todo mundo que não está comprometido com um trabalho sério e honesto?
Quais mudanças são necessárias para uma melhora efetiva na segurança?
As soluções para o Rio de Janeiro são o arroz com feijão da segurança pública. É investir na redução do tempo de resposta do 190, porque uma polícia que chega depois de dez minutos em qualquer ocorrência é a polícia do depois que matou, do depois que estuprou, do depois que assaltou. É resgatar a credibilidade das corporações junto à população, renovar a imagem, ampliar e divulgar o combate à corrupção interna. É fazer um controle individual do gasto de munições, do uso do armamento, com uma doutrina clara de uso da força, um programa amplo de controle da ação policial, preparando os agentes para não agirem de forma indecisa, amedrontada. É mostrar que a polícia está efetivamente trabalhando nas ruas, e não só parado dentro de viaturas, dormindo, conferindo as redes sociais, ou participando de operações.
Qual tem sido o impacto dessa descredibilização das polícias no Rio? É possível voltar a confiar nessas estruturas?
Como eu disse, quando se tem polícias completamente desmoralizadas na sua imagem, na sua credibilidade, as vidas dos policiais honestos, dos cidadãos e dos suspeitos ficam em risco. Um dos problemas hoje é que a polícia está indo para a rua produzir estatística, kits de sucesso. Se incentiva uma política de medo para aparecerem autoridades bravateiras, que afirmam “comigo, bandido não se cria” e apresentam ações “instagramáveis”. No final das contas, não se gera controle de território e da população: o status quo dos domínios armados permanece. Faz-se uma falsa guerra contra o crime para maquiar a corrupção dos bastidores. Não faltam competências e qualidades dentro das nossas polícias para dar, de novo, mais uma virada. O estado foi pioneiro em ideias originais, todas elas desmontadas e desmoralizadas porque estavam dando prejuízos político e criminoso.
Muitos pesquisadores apontam para a falta de transparência na atividade policial no Rio. Como isso afeta a sensação de segurança?
Sempre se fala do quanto falta transparência nas decisões sobre a segurança pública do Rio. Tornar os protocolos públicos e publicados é condição de transparência, é o que transforma o “policialês” em “cidadanês”, faz parte de uma prestação de contas. Não existe, no estado, um programa claro e publicizado sobre o trabalho da polícia, e é fundamental que as lideranças expliquem o que estão fazendo e o porquê das decisões. Não adianta dizer, mentir para a população, que vai trabalhar com a inteligência, porque até ela tem sido sabotada, assim como as investigações, a pronta resposta, o policiamento ostensivo. Se gasta o policial subindo e descendo morro sem produzir resultados, e é por isso que precisa existir uma mudança de mentalidade institucional.
Desde 2022, a polícia aponta para um avanço do Comando Vermelho no Rio. Diversas investigações e operações são feitas para inibir esse crescimento, mas os resultados não parecem efetivo. Por que isso ocorre?
Todos os governadores dizem que estão combatendo o Comando Vermelho, a maior facção do estado, e veja o resultado: ela só fez crescer, se fortalecer e expandir para todo o país. Esse avanço só reforça que o governo não combate, faz cortina de fumaça. E isso tudo fica claro durante os grandes eventos na cidade, quando ocorre a fabricação de uma “paz momentânea”. O problema não é o tráfico em si, mas sim as bases estatais que o mantém no poder. A entrada de armas no estado, por exemplo, é patrocinada por funcionários públicos que tem conhecimentos especializados. As notícias mostram policiais, soldados das forças armadas trabalhando juntamente ao crime organizado, praticamente como consultores. Todos estão se dando bem, menos a cidadania.
E sobre a presença de uma força municipal armada? A proposta foi divulgada pelo prefeito Eduardo Paes assim que assumiu o novo mandato.
A prefeitura não tem um projeto pronto sobre “armar a guarda” para explicar por que armar? Para fazer o que? Onde? Quando? Com que meios? Com quais modos táticos de atuação? Com quais controles do emprego do uso de força? E com quais custos? Não se tem ainda como saber se vai virar uma proposta responsável e viável à realidade da segurança pública do Rio, ou vai virar mais um remendo eleitoreiro para a sociedade se posicionar. O contra e o a favor estão tão impressionistas e especulativos quanto o anúncio. Não basta ir à loja e comprar pistolas e armar guardas em praças ou na porta de escolas. Não se improvisa com organizações armadas. Para que o Gaurda Municipal não seja mais um agente da lei com cabeça quente e dedo nervoso, mais uma isca de tiroteios, ou promotor de balas perdidas, precisa haver toda uma reestrutução que, se começar hoje, vai demorar cerca de 4 anos para se materializar, e os efeitos só serão efetivos e positivos após 36 meses.
O antropólogo Robson Rodrigues, antropólogo e ex-chefe do Estado-Maior da Polícia Militar — Foto: Julio Cesar Guimaraes
Robson Rodrigues, antropólogo e ex-chefe do Estado-Maior da Polícia Militar
Como melhorar a segurança no estado do Rio?
Para começar, o sistema policial é ultrapassado. Existe uma dicotomia que é rara em outros países: uma polícia civil e outra militar. Temos a polícia ostensiva, que atua nas ruas, mas não realiza investigações, e outra que investiga, mas se tornou reativa, limitada a um trabalho cartorário nas delegacias, que se assemelham a pré-escritórios judiciais. Não é possível falar em eficiência no sistema policial com duas forças de segurança distintas competindo pelo mesmo espaço, disputando poder, posição e salário.
E qual seria a solução para isso? Unificar as polícias?
Não é necessário unificar, mas criar um ciclo completo de polícia. Isso significa ter uma Polícia Militar que também faça investigações e uma Polícia Civil que realize trabalho ostensivo, ampliando as funções de ambas as forças. A unificação seria difícil porque envolve interesses e projetos de poder de cada instituição. A alternativa mais racional e viável seria a divisão territorial. Por exemplo, em uma região do interior do estado, uma instituição cuidaria tanto da investigação quanto da prevenção. Na região metropolitana, outra instituição assumiria essas funções.
E como combater os índices de criminalidade?
Não é possível falar sobre violência no Rio de Janeiro e no Brasil sem abordar a desigualdade. Vivemos em um país que não oferece projeção ou perspectiva para os jovens, especialmente os das periferias. O que acontece? Esses jovens frequentemente são cooptados por organizações criminosas. A ausência de ensino de qualidade e de oportunidades, combinada com operações policiais que dificultam ainda mais a vida de moradores de áreas de risco, agrava o problema. O mercado criminoso é alimentado por uma abordagem equivocada de segurança pública, que acredita resolver problemas com violência letal contra essas comunidades. A criminalidade não será reduzida enquanto não houver políticas preventivas voltadas para emprego, renda e educação.
Como podemos retirar as armas das mãos dos criminosos?
A flexibilização do acesso às armas facilitou o armamento dos criminosos. Diariamente surgem notícias sobre CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores) laranjas que transacionam armas de forma criminosa para organizações criminosas. É necessário trabalhar em parceria com o Governo Federal para mudar essa realidade. Além disso, há desvios de armas e munições nas forças armadas e policiais. É imprescindível intensificar a fiscalização de paióis e quartéis para prevenir esses crimes.
Como vê a ideia de implementar a guarda armada em uma área-piloto?
É interessante a ideia de um projeto-piloto. Projetos desse tipo serve para identificar equívocos, corrigir erros e orientar a reformulação de algo mais consistente, que possa ser generalizado e ampliado para outros locais. No entanto, não pode ser usado pelo prefeito apenas como um mecanismo seletivo para definir onde ele irá atuar. Além disso, é necessário estabelecer um pacto com o governo estadual, garantindo que ele invista de acordo com o plano. Sem um plano estruturado, cada um age de forma independente, e um não sabe o que o outro está fazendo, o que resulta em um campo de forças com resultante zero.
José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública — Foto: Agência O Globo
José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública
Tem como resolver a segurança pública no Rio?
Sim, mas não será fácil. A primeira coisa que precisamos reconhecer é que as ações realizadas atualmente não estão melhorando o cenário de forma significativa. A sociedade tem todo o direito de estar indignada. Para começarmos a observar uma diferença real, é necessário restabelecer uma Secretaria de Segurança Pública única e efetiva, eliminando a divisão entre secretários para cada uma das polícias. Além da coordenação unificada, é essencial contar com uma única inteligência e uma corregedoria centralizada.
De que forma uma corregedoria unificada pode auxiliar na segurança?
É fundamental ter uma corregedoria integrada, acima das duas polícias, que atue de forma implacável na punição de policiais que cometam qualquer tipo de crime, desde os mais simples até os mais graves. A tolerância deve ser zero, e não basta afastar os policiais das ruas; é necessário demitir os infratores. Também é imprescindível monitorar as mortes cometidas por policiais, retirando das ruas aqueles com um histórico significativo de homicídios. Um agente do Estado com várias mortes no currículo se torna um risco à segurança pública. Além disso, é preciso investir na profissionalização dos policiais, oferecendo treinamentos constantes de alto padrão.
Como melhorar as ações policiais em territórios conflagrados?
Fora as ações emergenciais baseadas em informações urgentes, as operações policiais devem ser planejadas com base em diagnósticos precisos. Isso inclui o uso de inteligência centralizada, que considere possíveis consequências, locais sensíveis, perigos para a comunidade e estratégias para evitar disparos acidentais. As operações precisam ser cuidadosamente planejadas para minimizar efeitos colaterais. Atualmente, nossas operações são falhas. A primeira coisa que precisamos fazer é admitir que as estratégias usadas até agora não funcionaram. Quantas operações já foram realizadas no Complexo de Israel sem resultados efetivos? Muitas vezes, o saldo é apenas a apreensão de duas armas e algumas drogas, enquanto escolas permanecem fechadas, pessoas são baleadas e crianças morrem. Esses são efeitos colaterais inaceitáveis de uma política fracassada. Não adianta matar vários indivíduos para prender quatro criminosos. É necessário maior rigor, e as operações devem fazer parte de um plano estratégico de pacificação e melhorias. Não podemos continuar realizando ações isoladas sem um objetivo geral claro. Qual é o plano? Como tudo está sendo coordenado? Precisamos de metas mais objetivas.
De que forma podemos controlar a entrada de armas e drogas nas comunidades?
Deveríamos considerar, por exemplo, a possibilidade de usar tecnologia para monitorar o acesso a territórios extremamente conflagrados. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) já utiliza scanners capazes de detectar armas e drogas em veículos em movimento, utilizando um tipo de raio-x. Por que não instalar essa tecnologia em algumas entradas de comunidades? Mesmo que não seja possível implementá-la em todas as localidades, seria um começo promissor.
A implantação de uma guarda municipal armada ajudaria a diminuir a insegurança?
Implantar uma guarda armada enfrenta diversos empecilhos jurídicos e dificuldades relacionadas ao treinamento, os quais demandam tempo. Não há condições efetivas de implementar algo que produza resultados em menos de dois anos. Mas evidentemente que as guardas, assim como a que já temos, pode ajudar. Temos escolas municipais que precisam de cuidados, centenas de praças, unidades básicas de saúde e áreas de transporte público.
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