O Brasil figura entre os países com maiores fontes de energia limpa e renovável do planeta: 80% do que consumimos no território vêm da água, do vento ou do sol. Por outro lado, quando se fala em transição energética, faltam investimentos para que o país se torne competitivo no mercado internacional. Na avaliação de especialistas, esse é o momento para tornar a nação em protagonista mundial na agenda.
Os brasileiros sentiram, em 2023, os efeitos do aquecimento global combinado com o El Niño — que são alterações significativas na distribuição da temperatura da superfície da água do Oceano Pacífico, com grandes alterações no clima — mais prolongado e severo. Da seca sem precedentes na Amazônia a alagamentos e ciclones na região Sul, os eventos climáticos extremos chamam atenção para a necessidade de agir de forma rápida e assertiva para estancar as emissões de gases do efeito estufa.
Segundo a diretora de recursos humanos e comunicação do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa (Research Centre for Greenhouse Gas Innovation – RCGI), Karen Louise Mascarenhas, a transição energética é um conceito ainda em discussão, mas costuma ser compreendido como a transição dos combustíveis fósseis para fontes renováveis.
“Essa transição é requerida, pois a ciência aponta as emissões resultantes do uso dos combustíveis fósseis como a principal causa das mudanças climáticas antropogênicas. Ou seja, aquelas causadas por atividades humanas, sejam industriais, agrícolas e pelo desmatamento, que liberam dióxido de carbono e outros gases chamados gases de efeito estufa, que aquecem o planeta Terra”, explicou a especialista.
Segundo a diretora do RCGI, a transição para energias renováveis é essencial para limitar o aquecimento global. “Pois ele provoca as mudanças climáticas, resultando em eventos extremos, como secas e chuvas intensas, incêndios florestais devastadores, e interfere nos sistemas globais de uso da terra e produção de alimentos, e nos ecossistemas terrestres e aquáticos. Isso pode chegar a provocar a extinção de espécies nativas.”
“A transição energética segue caminhos distintos a depender do contexto, considerando a disponibilidade de recursos naturais, do desenvolvimento tecnológico, da demanda e usos finais do mercado consumidor, de aspectos culturais e econômicos, de decisões governamentais e políticas públicas, além da percepção e aceitação da sociedade em seus diversos extratos”, afirmou Mascarenhas.
Nesse sentido, o Brasil apresenta trunfos importantes para realizar a sua transição energética. Para Karen Louise Mascarenhas, o país “possui recursos naturais abundantes, como sol, vento e água, favorecendo a geração de energia renovável”.
“Além disso, a matriz energética brasileira tem uma participação significativa de biocombustíveis, como etanol de cana-de-açúcar ou de milho, com baixo nível de emissões. Essas emissões podem vir a ser zeradas ou negativas com a implementação de tecnologias complementares de captura e armazenagem de carbono no processo.”
No entanto, a especialista explica que apesar dos avanços, o país depende consideravelmente de combustíveis fósseis, principalmente no setor de transporte pesado. “Adicionalmente, há necessidade de investimentos em infraestrutura para ampliar a capacidade de geração de energia renovável e sua integração à rede elétrica”, frisou.
A diretora citou como a agenda governamental tem incentivado a energia renovável na medida em que promove programas e iniciativas como, por exemplo, leilões de energia e linhas de financiamento. “O Brasil tem participado de acordos internacionais sobre mudanças climáticas, demonstrando comprometimento com a redução de emissões.”
Para que o país seja protagonista nessa agenda, existem obstáculos a serem superados. Segundo Luiz Ferraro, vice-presidente do Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (Fun BEA), é necessário reformular a abordagem da nação diante do tema. “O Brasil é central no cenário global, o que podemos problematizar é termos ficado em uma posição desfavorável de exportador de commodities. Vejo uma continuidade dos riscos, o de sermos meros exportadores de energia ou de produtos de alto conteúdo energético e o de sermos compradores das tecnologias da transição energética.”
“Para não ficarmos no mesmo lugar no bonde, precisamos enfrentar desafios que desde José Bonifácio e Celso Furtado estamos discutindo, o de mudar nossa pauta de exportações para produtos de maior valor agregado e o desafio de investir em educação, ciência e tecnologia para podermos ser desenvolvedores e exportadores de conhecimento e tecnologia e não importadores”, pontuou o vice-presidente do Fun BEA.
Para Ferraro, os pontos negativos que o Brasil pode enfrentar e médio a longo prazo são os mesmos que temos enfrentado com nosso lugar tradicional nos bondes da história. Neste lugar que costumamos ocupar, os riscos e as externalidades dos processos (poluição, resíduos, perda de terra, redução da disponibilidade da água e de pescado etc.) são socializados para toda a população, em especial para os grupos mais vulneráveis, enquanto os benefícios e lucros são privatizados por uma minoria.
“Alguns países conseguiram mudar seu lugar na divisão internacional do trabalho, sair do ‘chão de fábrica’ e galgar posições melhores, com trocas mais favoráveis para o bem-estar de seus nacionais. Normalmente esses países investiram em educação, ciência, tecnologia, infraestrutura e na diversificação de sua pauta econômica. A China inclui nisso um desenvolvimento fortíssimo de seu mercado interno”.
Um novo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês), divulgado no último dia 24, mostra que o Brasil e o mundo estão investindo mais na transição energética do que na prospecção e produção de combustíveis fósseis. Até 2030, a participação das fontes renováveis no mundo devem saltar dos atuais 30% para 50%, segundo a entidade vinculada à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Segundo Luciano Machado, engenheiro civil especialista em geotecnia, os principais desafios para que o país seja protagonista em transição energética “estão diretamente ligados aos interesses financeiros e políticos, criar o ambiente interno propício para implementação das políticas públicas para a transição, renunciar à exploração, bem como, fazer alianças estratégicas no cenário mundial, será o que vai definir se realmente o Brasil será o protagonista da transformação que o mundo tanto necessita”.
A agenda contraditória do governo tem deixado ambientalistas e autoridades do setor elétrico apreensivos em relação à transição energética. O Brasil conta com uma série de trunfos para ser um dos protagonistas no uso de energia limpa, no entanto, a expansão de combustíveis fósseis, incluindo as termelétricas inflexíveis, além da insistência da Petrobras em explorar a Foz do Amazonas, na Margem Equatorial, ameaçam o avanço desse processo.
Para a coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suley Araújo, o país vive um impasse com as últimas ações chanceladas pelo governo. “Há uma contradição interna na narrativa e em políticas públicas bem construídas na área de meio ambiente e clima na área de energia”, destaca.
Com produção de 3,672 milhões de barris de petróleo por dia, o Brasil é o nono maior produtor de petróleo do mundo e o primeiro da América Latina. Desde o recente anúncio de adesão à Opep — versão ampliada da Organização dos Países Produtores de Petróleo, cartel dos maiores produtores globais —, o país tem recebido estímulos a ampliação da produção.
“Nós não somos pequenos nessa área, é um país que exporta e não precisa do aumento da produção de sua demanda interna. A ideia de parte das autoridades na área de energia é aumentar a produção para passar de 9º maior produtor para 4º, querem mais ou menos competir com a Arábia Saudita”, pondera.
Ignorando o clamor pelo fim dos combustíveis fósseis, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) realizou, no início de dezembro, um megaleilão de 603 blocos de exploração de petróleo e gás natural. Apelidado de “leilão do fim do mundo”, é o maior já realizado no país, sendo parte destes blocos localizados em regiões de conservação ambiental.
“O leilão teve um bom saldo, 194 blocos foram adquiridos e ainda bem que o mercado é sábio em determinadas situações e se afastou da compra de blocos em áreas protegidas, porque estavam à venda 11 blocos na cadeia de montanhas submarinas que fazem parte do mesmo ecossistema de Atol das Rocas, em Fernando de Noronha. O próprio mercado é que pulou fora. Essa opção pela intensificação da produção do petróleo provavelmente gera dinheiro, o debate é para quem e a que custo”, questiona.
Segundo a pesquisadora, o leilão mostrou o grande contrassenso às preocupações levantadas durante a 28ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP28. “Mesmo que esse petróleo não entre na nossa conta de emissões, porque, em grande parte, vai ser exportado e vai queimar em algum lugar do mundo, isso vai contribuir para a piora da crise climática”, ressalta.
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