Uma silhueta idêntica cortou os céus do Leste Europeu e do Oriente Médio, na quinta-feira da semana passada. Em ataques lançados com poucas horas de diferença, Rússia e Irã bombardearam alvos na Ucrânia e no Paquistão, respectivamente, com uma arma em comum: drones Shahed-136, de fabricação iraniana.
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Os chamados “drones kamikaze” são um lembrete material da crescente interação entre um grupo de países não-alinhados ao Ocidente. Cada qual com seu objetivo estratégico, mas unidos por um inimigo comum (e pelas sanções que enfrentam), Rússia, Irã e Coreia do Norte encontraram uns nos outros alternativas para cobrir necessidades táticas e reforçar suas capacidades.
O arsenal russo é a ponta mais visível da crescente interação entre os países. Relatórios de inteligência confirmam, desde 2022, a incorporação de drones e projéteis do Irã às forças russas em ação no Leste Europeu. Mais recentemente, fontes ocidentais e de Kiev confirmaram o uso de armas norte-coreanas, como mísseis da série KN. A relação entre Teerã e Pyongyang, incluindo em seus programas de mísseis balísticos e no fornecimento de armas a grupos pró-iranianos, como os houthis no Iêmen, também é conhecida.
2 de 2 Rússia, Irã e Coreia do Norte encontraram apoio para seus objetivos táticos uns nos outros — Foto: Arte/O GLOBO Rússia, Irã e Coreia do Norte encontraram apoio para seus objetivos táticos uns nos outros — Foto: Arte/O GLOBO
Embora partes e componentes produzidos em mais de 30 países tenham sido encontrados em armas russas usadas na Ucrânia, segundo as autoridades de Kiev, as interações entre Moscou, Teerã e Pyongyang são motivo de preocupação especial no Ocidente. A consultoria de risco político Eurasia Group apontou o trio como uma das principais ameaças à estabilidade global em 2024. Em seu relatório de perspectivas para o ano, a consultoria com sede em Nova York cravou a alcunha “Axis of Rogues” (“Eixo dos Vilões”, em tradução livre) para defini-los.
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“São agentes do caos na ordem geopolítica atual, empenhados em minar as instituições existentes e os governos e princípios que as sustentam”, aponta um trecho do relatório. “Em 2024, um alinhamento mais profundo e o apoio mútuo entre esses Estados-pária representarão uma ameaça crescente à estabilidade global, à medida que reforçam as capacidades uns dos outros e agem de forma cada vez mais coordenada e perturbadora na cena global”, indica um outro trecho.
Casamento arranjado
Embora a oposição ao Ocidente seja o elo mais aparente entre os países, um conjunto de fatores explica a aproximação, segundo analistas ouvidos pelo GLOBO, desde as sanções estrangeiras, que limitam as possibilidades de interação, o cenário conflituoso que divide a atenção da comunidade internacional e mesmo os objetivos específicos de cada um.
— É correto ver a crescente interação entre Rússia, Irã e Coreia do Norte pelo prisma de que todos eles têm interesses [próprios] e que todos estão sob pesadas sanções dos EUA — disse Eric Gomez, pesquisador sênior do Cato Institute, ao explicar as razões para a cooperação. — Todos eles possuem algo que é de interesses dos outros: a Rússia precisa de mais equipamento militar para usar na guerra da Ucrânia, a Coreia do Norte precisa de acesso a capital estrangeiro e tecnologia moderna… Todos eles viram uma oportunidade.
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A percepção de um momento favorável para a interação e o inimigo em comum, porém, não garantem que estejamos diante da criação de uma aliança de contestação à Ordem Mundial.
— São países muito diferentes, com objetivos e ambições muito diferentes, mas que neste momento vivem um casamento por conveniência — detalhou o presidente do Eurasia Group, Cliff Kupchan. — Todos eles têm grandes problemas com o Ocidente e com a política dos EUA, e estão ajudando uns aos outros. Chamar de aliança seria muito forte, embora seja uma parceria ativa e preocupante.
Jogos regionais de poder
Mesmo que não se trate de uma “anti-Otan” ou de uma reedição da Conferência de Yalta com novos atores, as relações estratégicas criam novos desafios, sobretudo para o Ocidente, em cada várias regiões do mundo.
No caso da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, Putin afirmou, entre suas muitas justificativas, que se tratava de uma guerra de contenção ao avanço da Otan em direção ao Leste — embora muitos observadores tenham apontado que o regime de Putin se preocuparia mais com a expansão da União Europeia e de suas instituições liberais.
Na avaliação de Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM, o objetivo atual de Moscou ainda é converter a Ucrânia em uma espécie de Estado-tampão entre a Rússia e o bloco ocidental.
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O jogo regional do Irã também é profundamente relacionado com a ambição de assegurar o status quo do regim. De acordo com Sara Bazoobandi, pesquisadora iraniana no Instituto GIGA para Estudos sobre Oriente Médio, da Alemanha, a retórica hostil e o uso de grupos armados em outros países — como os houthi, que disparam contra a navios comerciais no Mar Vermelho — são parte da estratégia de manter os conflitos longe de Teerã.
— A estratégia do Irã é construída para evitar conflitos e guerras em solo iraniano, uma decisão muito influenciada pela guerra com o Iraque, nos anos 80. Eles querem evitar um conflito direto a todo custo — explicou Bazoobandi. — O conflito em Gaza foi encarado por Teerã como uma oportunidade de projetar seu poder e demonstrar suas capacidades para o mundo.
O jogo norte-coreano é o mais imprevisível, na avaliação dos especialistas consultados pelo GLOBO. Kim Jong-un promoveu mudanças importantes na constituição do paí, fechou agências de cooperação para a reunificação com a Coreia do Sul e ordenou que suas tropas ficassem de prontidão para a guerra — tudo isso, somado a uma escalada no testes de armamentos.
— Não estou certo do que eles farão, mas estamos ouvindo de diversas fontes que a Coreia do Norte provavelmente será uma surpresa desagradável para 2024. Farão um teste nuclear? Algum tipo de incursão ou invasão da Coreia do Sul? Não sabemos. Mas acredito que é um país que vamos ter de observar de perto. Quando se olham essas interações, está claro que haverá problemas — afirmou Kupchan.
Plataforma chinesa
O apoio mútuo entre Moscou, Teerã e Pyongyang não funciona apenas como um circuito fechado. Os planos estratégicos dos três países também são cada vez mais influenciados por um ator externo: a China.
Principal economia fora do Ocidente e integrada plenamente ao sistema internacional, Pequim se tornou a fonte primária de recursos financeiros para os regimes não democráticos. Os chineses assumiram boa parte da oferta de petróleo e gás russos que ficou sobressalente após o congelamento de relações com os europeus. Também tem um peso decisivo nas relações comerciais de Irã e Coreia do Norte.
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Rússia, Irã e Coreia do Norte têm seus próprios objetivos táticos, mas há alguém com um objetivo estratégico muito claro, que é Pequim — disse Trevisan. — O projeto de protagonismo chinês está muito mais colado em dependência econômica do que em presença militar, o que não quer dizer que não estejam prontos para se defender de agressões.
Embora Pequim tenha suas próprias preocupações com o trio, incluindo os programas nucleares da Coreia e do Irã, a dependência econômica desses países deixa o regime chinês em uma posição de força, em que o fechamento de seu mercado cobraria um preço alto para o eixo renegado. Contudo, a torneira dos recursos chineses permanece aberta enquanto a atuação é vista como benéfica.
A China mantém uma política que eu chamaria de “neutralidade pró-vilões” — afirmou Kupchan, referindo-se ao termo cunhado pela Eurasia Group. — Ela olha para o outro lado ou apoia taticamente esses países. Atua como um facilitador das políticas desse trio, de uma forma bastante preocupante para os formuladores de políticas dos EUA.
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